A partilha da África
No fim do século 19, países europeus repartiram o continente
africano entre si e o exploraram durante quase 100 anos. Os invasores se foram,
mas deixaram os efeitos nefastos de sua presença
Ao encerrar a Conferência de Berlim, em 26 de fevereiro de
1885, o chanceler alemão Otto von Bismarck inaugurou um novo – e sangrento –
capítulo da história das relações entre europeus e africanos. Menos de três décadas
após o encontro, ingleses, franceses, alemães, belgas, italianos, espanhóis e
portugueses já haviam conquistado e repartido entre si 90% da África – ou o
correspondente a pouco mais de três vezes a área do Brasil. Essa apropriação
provocou mudanças profundas não apenas no dia-a-dia, nos costumes, na língua e
na religião dos vários grupos étnicos que viviam no continente. Também criou
fronteiras que, ainda hoje, são responsáveis por tragédias militares e
humanitárias.
O papel da conferência, que contou com a participação de 14
países, era delinear as regras da ocupação. “A conferência não ‘dividiu’ a
África em blocos coloniais, mas admitiu princípios básicos para administrar as
atividades européias no continente, como o comércio livre nas bacias dos rios
Congo e Níger, a luta contra a escravidão e o reconhecimento da soberania
somente para quem ocupasse efetivamente o território reclamado”, afirma Guy Vanthemsche,
professor de História da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, e do
Centro de Estudos Africanos de Bruxelas.
A rapidez com que a divisão se deu foi conseqüência direta
da principal decisão do encontro, justamente o princípio da “efetividade”: para
garantir a propriedade de qualquer território no continente, as potências
européias tinham de ocupar de fato o quinhão almejado. Isso provocou uma
corrida maluca em que cada um queria garantir um pedaço de bolo maior que o do
outro. “Em pouco tempo, com exceção da Etiópia e da Libéria, todo o continente
ficou sob o domínio europeu”, diz a historiadora Nwando Achebe, da Universidade
Estadual do Michigan. A Libéria, formada por escravos libertos enviados de
volta pelos Estados Unidos, havia se tornado independente em 1847. Na Etiópia,
a independência foi garantida depois da Conferência de Berlim, com a vitória do
exército do imperador Menelik II sobre tropas italianas na batalha de Adwa, em
1896.
O interesse europeu pela África vinha de muito tempo antes
da conferência. No século 15, os portugueses já haviam chegado aos arquipélagos
de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, iniciando sua ocupação do continente (que
depois se estendeu a Angola e Moçambique). Os britânicos ocuparam partes da
atual África do Sul, do Egito, do Sudão e da Somália no século 19. No mesmo
período, os franceses se apoderaram de parte do Senegal e da Tunísia, enquanto
os italianos marcavam presença na Eritréia desde 1870. Em 1902, França e
Inglaterra já detinham mais de metade do continente.
Tiros e mentiras
A ocupação não se deu somente com a força das armas de fogo,
que eram novidade para muitos dos povos subjugados. A trapaça foi largamente
usada para a conquista e manutenção dos territórios. O rei Lobengula, do povo
Ndebele, é um exemplo: assinou um contrato em que acreditava ceder terras ao
magnata britânico Cecil Rhodes em troca de “proteção”. O problema é que o
contrato firmado pelo rei não incluía a segunda parte do trato. O monarca nem
percebeu, pois era analfabeto e não falava inglês. Apesar dos protestos de
Lobengula, que acreditava que a palavra valia alguma coisa entre os
recém-chegados, o governo da Inglaterra se fez de desentendido. Apoiou a
exploração do território Ndebele, no atual Zimbábue, de onde Rhodes tirou
toneladas de ouro.
O mais famoso entre os trapaceiros, no entanto, foi o rei
Leopoldo II, que conseguiu passar a perna em africanos e europeus. Soberano de
um pequeno país, a Bélgica, não tinha recursos nem homens para ocupar grandes
territórios. Por isso, criou associações que se apresentavam como científicas e
humanitárias, a fim de “proteger” territórios como a cobiçada foz do rio Congo.
“Graças a hábeis manobras diplomáticas, ele conseguiu obter o reconhecimento,
por todas as potências da época, de um ‘Estado Livre do Congo’, do qual ele
seria o governante absoluto”, afirma o professor Vanthemsche. Leopoldo dominou
com mão de ferro o Congo, usando métodos violentos para conseguir extrair o
máximo que pudesse para aumentar sua riqueza pessoal.
Mas o principal método utilizado pelos europeus foi o bom e
velho “dividir para dominar”. A idéia era se aproveitar da rivalidade entre
dois grupos étnicos locais (ou criá-la, se fosse inexistente) e tomar partido
de um deles. Com o apoio do escolhido, a quem davam armas e meios para subjugar
os rivais, os europeus controlavam a população inteira. “Pode-se dizer que
todas as potências conduziam a conquista da mesma forma: através da força
bruta, dividindo para dominar e usando soldados que eram principalmente
africanos e não europeus”, diz Paul Nugent, professor de História Africana
Comparada e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de
Edimburgo, na Escócia.
O método usado pelos colonizadores provocou tensões que até
hoje perduram, pois transformou profundamente as estruturas sociais
tradicionais da África. “Formações de grupos flexíveis e cambiantes foram
mudadas para ‘estruturas étnicas’ bastante rígidas”, afirma Vanthemsche. O
exemplo mais extremo dessa fronteira imaginária criada pelos europeus é o de
tutsis e hutus, de Ruanda. Os tutsis foram considerados de “origem mais nobre”
pelos colonizadores (primeiro alemães, depois belgas), e os hutus foram
colocados em posição de inferioridade. Os tutsis mantiveram o poder mesmo após
a saída dos belgas. Em 1994, 32 anos após a independência de Ruanda, cerca de 1
milhão de pessoas morreram no conflito em que os detentores do poder foram
perseguidos pelos até então marginalizados hutus.
As fronteiras territoriais também foram delineadas sem
respeitar a disposição da população local, com base nos interesses dos
europeus. “Eles recorriam a noções arbitrárias como latitude, longitude, linha
de divisão das águas e curso presumível de um rio que mal se conhecia”, afirma
o historiador Henri Brunschwig em A Partilha da África Negra. E essas
fronteiras ainda sobrevivem. Segundo o geógrafo francês Michel Foucher, cerca
de 90% das atuais fronteiras na África foram herdadas do período colonial.
Apenas em 15% delas foram levadas em consideração questões étnicas. Há ainda
mais de uma dezena de fronteiras a serem definidas, segundo
Foucher.
O Saara Ocidental é o único caso de território africano que
ainda não conseguiu a independência. Em 1975, depois de décadas explorando o
fosfato da região, a Espanha o abandonou. No mesmo ano, o Marrocos invadiu o
país. Houve resistência, e a guerra durou até 1991. Desde então, a Organização
das Nações Unidas tenta organizar um referendo para que a população decida se
quer a independência ou a anexação pelo Marrocos.
Para os países africanos, ver-se livre dos europeus não
significou uma melhoria de sua situação. Ao contrário: em muitos lugares, a
independência provocou guerras ainda mais sangrentas, que contaram com a
participação das antigas metrópoles coloniais. Um exemplo é a Nigéria. Seis
anos após a independência do país, em 1960, os ibos, que haviam adotado o
cristianismo, declararam a secessão do território nigeriano de Biafra. Foram
apoiados por franceses e portugueses, interessados nas ricas reservas de
petróleo da região. Os hauçás e fulanis, muçulmanos que dominavam o cenário
político do país, lutaram pela unidade apoiados pelos ingleses. O resultado foi
uma guerra civil em que quase 1 milhão de nigerianos morreram, a grande maioria
de fome – até hoje o país é palco de embates religiosos e políticos.
Na marra
Não se sabe exatamente quantos grupos étnicos havia na
África quando os colonizadores chegaram, mas acredita-se que fossem por volta
de mil. “O que sabemos sugere que as formações políticas e grupais eram muito
mais fluidas e a variação lingüística era muito maior do que na era colonial”,
diz o historiador Keith Shear, do Centro de Estudos Africanos Ocidentais da
Universidade de Birmingham. Línguas foram adotadas em detrimento de outras, o
que provocou o nascimento de elites. “A chegada de missionários e a introdução
de escolas formais fizeram com que dialetos específicos fossem selecionados
para traduzir a Bíblia. Estabeleceram-se ortografias oficiais, provocando
homogeneidade lingüística”, afirma Shear. Os que falavam a língua do grupo majoritário
tiveram mais facilidades num governo centralizado e dominado por uma só etnia.
Se por um lado alguns dialetos desapareceram, o mesmo não
ocorreu com a diversidade étnica. “Grupos étnicos não foram eliminados durante
o domínio colonial, apesar de os alemães terem tentado realizar o primeiro genocídio
na Namíbia”, diz Paul Nugent. Teria sido possível, inclusive, o surgimento de
outros povos. “Muitos historiadores defendem a tese de que novos grupos foram
criados durante o período colonial, pois as pessoas começaram a se autodefinir
de novas formas. Por exemplo: os ibos da Nigéria e os ewes de Gana e do Togo apenas
passaram a se denominar desse modo durante o período entre as duas Grandes
Guerras Mundiais”, afirma Nugent.
A colonização comprometeu duramente o desenvolvimento da
África. Hoje o continente abriga boa parte dos países mais pobres do planeta.
“No plano político, o legado do colonialismo inclui a tradição de administração
de cima para baixo, a persistência de burocracias que fornecem poucos serviços
e um baixo senso de identidade e interesse nacional. Os Estados são geralmente
fracos, ineficientes e brutais”, diz Shear. “Economicamente, o colonialismo
produziu, em sua maior parte, economias dependentes, monoculturistas e não
integradas, que atendem prioridades externas e não internas.”
A situação atual dos países africanos pode ser atribuída à
pressa que os colonizadores tiveram em transformar a realidade local. Isso fez
com que o continente pulasse etapas importantes. “O maior problema é que, em
apenas algumas décadas, as sociedades tradicionais africanas foram lançadas em
uma situação totalmente desconhecida. Você não pode criar um sistema
capitalista e Estados democráticos de um dia para outro, em poucas gerações. As
próprias sociedades tradicionais européias precisaram de séculos para chegar a
esse resultado”, diz Guy Vanthemsche. Essa chance nunca foi dada aos africanos.
Quase sem querer
As aventuras dos exploradores ajudaram na conquista dos
povos africanos
Mesmo quando pretendiam apenas “salvar” algumas almas, os
homens que desbravaram a África acabaram colaborando com os governos europeus
na conquista e ocupação do continente. “Missionários e exploradores tiveram
influências contraditórias. Trouxeram com eles importantes recursos, como armas
de fogo e outros bens, mas eram incapazes de controlar e prever as
conseqüências de suas intervenções”, diz Keith Shear, da Universidade de
Birmingham. Mesmo que involuntariamente, o explorador francês Pierre de Brazza
estimulou a convocação da Conferência de Berlim. Ele fez um acordo com Makoko,
rei dos batekes, que viviam próximo ao rio Congo: ofereceu proteção em troca de
exclusividade comercial. “A França então reivindicou soberania sobre a região
em 1882. Mas isso entrou em conflito com os interesses de países como Portugal,
Inglaterra e Bélgica”, diz o historiador Guy Vanthemsche, da Universidade Livre
de Bruxelas. O impasse entre os colonizadores os levou à Conferência. Outro
explorador, Henry Morton Stanley, trabalhou na mesma região que Brazza. Ajudou
o rei belga Leopoldo II a fundar o Estado Livre do Congo e a explorar os
trabalhadores locais, mas foi acusado de torturar e matar africanos a mando do
monarca. Antes disso, o galês Stanley, trabalhando como jornalista, fora
enviado à África por um diário americano para procurar o missionário escocês
desaparecido David Livingstone. Após percorrer milhares de quilômetros,
encontrou um homem branco e cunhou a célebre frase: “Doutor Livingstone, eu
presumo”. Acertou. Sob o lema “Cristianismo, Comércio e Civilização”,
Livingstone havia sido um dos primeiros europeus a cruzar a África, tornando-se
uma lenda viva. Ao converter os africanos ao catolicismo ou ao protestantismo,
entretanto, missionários como ele facilitavam a colonização. O combate às crenças
e rituais tradicionais contribuiu para que o poder dos líderes tribais
africanos, muito baseado na
religião, entrasse em declínio.
Aventuras na História- julho/06.
A partir do texto e de seus estudos, responda;
1- Explique o que foi e qual a
importância da conferência de Berlim.
2- Explique o princípio da
efetividade e seus efeitos na conquista da África.
3- Apresente formas utilizadas
pelos europeus para ocupação e colonização da África.
4- Explique o lema “Cristianismo,
comércio e civilização”,no contexto da colonização da África.
5- Explique “ dividir para
dominar”. Quais os efeitos desse método para os povos africanos?
6- Cite a questão que envolveu os
tutsis e hutus, em Ruanda.
7- As fronteiras territoriais
originais dos povos africanos foram respeitadas na sua divisão? Justifique.
8- Após a segunda guerra mundial,
o processo de independência na região garantiu a melhoria de sua situação?
Justifique.
9- De modo geral, quantos grupos
étnicos havia na África à época da colonização no século XIX? Qual o processo
que levou à formação de elites locais
entre eles?
10- Escreva o legado da colonização
aos países africanos.
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